segunda-feira, 17 de outubro de 2016

A reforma de Temer (ou a destruição do ensino médio)

A maioria do povo brasileiro foi surpreendido na última semana com a imposição de uma reforma no ensino médio. Não que devêssemos esperar o contrário de um governo oriundo de um golpe parlamentar, mas a ausência de diálogo assustou a todas as entidades que vinham participando das mudanças que vem ocorrendo nos últimos anos em todos os níveis da educação.

Além de uma profunda crítica a Medida Provisória, será necessário muita organização e luta dos trabalhadores da educação, estudantes e de toda a classe trabalhadora que tem mais um direito sendo roubado.
A reforma vem escondida em duas medidas que parecem ser positivas: o ensino em tempo integral e a possibilidade de aprofundamento dos estudos em áreas de interesse dos estudantes. No entanto, seria muito mais lógico começar a implantar o tempo integral no ensino fundamental que é o grande funil do ensino brasileiro, principalmente no final do segundo segmento. Já o aprofundamento dos estudos em áreas de interesses dos alunos seria muito bem-vinda sem que isso significasse a retirada dos conteúdos hoje obrigatórios. São esses conteúdos que são cobrados nas provas de acesso às universidades e que permitem a alguns jovens da classe trabalhadora ingressar nas melhores universidades do país.
A MP da reforma coloca um limite de 1200 horas, ou seja, metade da carga horária atual (2.400h em 3 anos) para a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Essa limitação implica que mesmo seja implementada o tempo integral, tudo que hoje é ensinado em 3 anos ou 2400h, será limitado a, no máximo, 1200h.
A alteração no art. 36 LDB, através da inclusão do inciso 6o:
§ 6º A carga horária destinada ao cumprimento da Base Nacional Comum Curricular não poderá ser superior a mil e duzentas horas da carga horária total do ensino médio, de acordo com a definição dos sistemas de ensinos.
Sobre a BNCC, ainda não há uma definição sobre como será finalizada. O processo de discussão foi duramente criticado por vários setores da educação. Foi iniciado durante o governo Dilma e durante o processo foi paralisado em função do golpe institucional contra a presidente.
Art. 36. O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos específicos, a serem definidos pelos sistemas de ensino, com ênfase nas seguintes áreas de conhecimento ou de atuação profissional:
I – linguagens;
II – matemática;
III – ciências da natureza;
IV – ciências humanas; e
V – formação técnica e profissional.
O aluno que escolher qualquer um dos itens específicos terá contato com o conjunto de conhecimentos do ensino médio apenas em metade do ensino médio, ficando mal preparado para as provas de seleção no ensino superior das melhores universidades que demandam um conhecimento do conjunto dos conteúdos do ensino médio. Além disso, é no 3o ano do E.M. que os estudos são mais determinantes no sucesso dos alunos nas provas de seleção.
A seguir temos o ponto da reforma que redefine o modelo do ensino médio. Se durante as três últimas décadas lutamos para construir um modelo universalista contra aquele da ditadura militar voltado apenas para o trabalho e formação da força de trabalho.
§ 9º A critério dos sistemas de ensino, a oferta de formação a que se refere o inciso V do caput considerará:
I – a inclusão de experiência prática de trabalho no setor produtivo ou em ambientes de simulação, estabelecendo parcerias e fazendo uso, quando aplicável, de instrumentos estabelecidos pela legislação sobre aprendizagem profissional; e
II – a possibilidade de concessão de certificados intermediários de qualificação para o trabalho, quando a formação for estruturada e organizada em etapas com terminalidade.
A possibilidade de integração com o setor produtivo é bem mais agressiva que a concentração do ensino na formação para o mercado de trabalho. Pensa-se aqui que a experiência da atividade laboral faça parte da formação do ensino médio. Assim, trata-se de disponibilização de força de trabalho a baixo custo para estudantes ainda em formação no ensino médio. Uma medida de redução de custos para o empresariado. Considerando o artigo 2o da MP chegamos a questão do financiamento, ponto que tem passado despercebido pelas análises da reforma.
Art. 2º A Lei nº 11.494, de 20 de junho de 2007, passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 10. …………………………………………………………………………………………..
XIV – formação técnica e profissional prevista no inciso V do caput do art. 36 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996;
XV – segunda opção formativa de ensino médio, nos termos do § 10º do caput do art. 36 da Lei nº 9.394, de 1996;
A Lei 11.494/2007 trata do uso dos recursos do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação). O FUNDEB foi a principal política desenvolvidas na última década para o aporte de recursos públicos para a educação pública. Considerando os pontos XIV e XV que foram incluídos na destinação de recursos do FUNDEB e que tratam do eixo profissionalizante proposto como uma das modalidades da parte diversificada do ensino médio e da “inclusão de experiência prática de trabalho no setor produtivo”, respectivamente. Concluímos, assim, que os recursos do FUNDEB podem ser utilizados para o financiamento da parte da formação do aluno no interior de empresas. Isto é, não apenas força de trabalho a baixo custo, pois ainda em formação, mas também, possivelmente remunerada com recursos públicos. O texto da MP não deixa suficientemente claro como se daria, mas abre a possibilidade de que empresas recebam recursos do FUNDEB com a justificativa de que estão incluídas na parte prática do ensino profissionalizante.
Outro ponto a ser destacado são os “certificados intermediários” que, na verdade, permite que o aluno possa cursar por semestres, como ocorre na educação de jovens e adultos. Cristaliza-se a formação parcializada característica de modalidades de ensino semi-presenciais como o famoso “supletivo”. Além disso, cria insegurança para os professores que podem perder turmas caso uma quantidade significativa de alunos não opte por continuar o segundo semestre naquele momento.
§ 14. Além das formas de organização previstas no art. 23, o ensino médio poderá ser organizado em módulos e adotar o sistema de créditos ou disciplinas com terminalidade específica, observada a Base Nacional Comum Curricular, a fim de estimular o prosseguimento dos estudos.
Assim, permite que a lógica da “otimização” ganhe terreno. A escola não pode ser pensada como uma fábrica em que a as salas devem estar cheias “aproveitando” ao máximo cada professor.
A ampliação das formas de avaliação no inciso 17 do artigo 1o permite, na verdade, uma flexibilização do modelo de avaliação, permitindo, “mediante diferentes formas de comprovação, que o aluno seja avaliado através de:
I – demonstração prática;
II – experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar;
III – atividades de educação técnica oferecidas em outras instituições de ensino;
IV – cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais;
V – estudos realizados em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras; e
VI – educação a distância ou educação presencial mediada por tecnologias.” (NR)
O ponto VI permite que o estudante é uma aberração em si. Permitir que se avalie a partir de educação presencial mediada por tecnologias pode ser qualquer coisa, até mesmo prova através da internet. As tecnologias são pensadas como mutiladoras da relação professor-estudante, isto é, do próprio processo pedagógico.
Sobre a possibilidade de contratação de qualquer profissional para dar aulas no ensino médio, sem ser formado em alguma licenciatura vale ler o artigo “‘Notório saber’: vire professor em 5 semanas”. A maior oferta de profissionais, ainda mais em tempos de crise econômica, será mais um fator a forçar para baixo os salários dos professores, seja do ensino público ou privado. Além da rotatividade e falta de preparo adequado, precarizando ainda mais a educação.
Em apenas uma canetada o atual governo quer destruir a luta de uma geração por uma educação de qualidade, gratuita e universal. Desde o período final da ditadura empresarial-militar os movimentos organizados da classe trabalhadora colocaram a educação como um dos pontos centrais do seu programa para a transição à democracia representativa. Muitas lutas permitiram chegar a criação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em 1996, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Além dos massacres sobre os movimentos populares que tentaram resistir à onda de privatizações e a imposição do seu programa de arrocho sobre os trabalhadores, FHC cortou a LDB pelo cordão umbilical pois impediu que fossem destinados os 7% do PIB para a educação, como se defendia na época. Agora, ainda sem garantir os recursos necessário para fazer a educação funcionar o governo Temer quer desmantelar o que foi conquistado com aquelas lutas. Ainda que o PT também seja responsável pelo que está acontecendo em função de ter escolhido governar para e junto com a burguesia, este é o momento de juntar forças com quem quer que seja na luta contra a reforma do ensino médio. Os estudantes secundaristas e profissionais da educação de todo o Brasil, certamente, terão um protagonismo fundamental nessa luta, sem o qual estamos fadados a sofrer uma das piores derrotas no âmbito da educação nos últimos 30 anos.

Autor: Anderson Tavares (C.B – U.C -RJ)
Retirado de: https://pcb.org.br/portal2/12348
 
Fontes:
LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
LEI Nº 11.494, DE 20 DE JUNHO DE 2007, regulamenta o uso dos recursos do FUNDEB.
MEDIDA PROVISÓRIA Nº 746, DE 22 DE SETEMBRO DE 2016.
Artigos consultados:
“‘Notório saber’: vire professor em 5 semanas”, Blog do Freitas. Retirado de:
“Notório saber”: vire professor em 5 semanas
“Reforma de ensino médio do (des) governo de turno: decreta-se uma escola para os ricos e outra para os pobres” Retirado de:
http://www.anped.org.br/news/reforma-de-ensino-medio-do-des-governo-de-turno-decreta-se-uma-escola-para-os-ricos-e-outra
http://csunidadeclassista.blogspot.com.br/2016/10/a-reforma-de-temer-ou-destruicao-do.html

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Reforma de ensino médio do (des) governo de turno: decreta-se uma escola para os ricos e outra para os pobres

 
A reforma de ensino médio proposta pelo bloco de poder que tomou o Estado brasileiro por um processo golpista, jurídico, parlamentar e midiático, liquida a dura conquista do ensino médio como educação básica universal para a grande maioria de jovens e adultos, cerca de 85% dos que frequentam a escola pública. Uma agressão frontal à constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes da Educação Nacional que garantem a universalidade do ensino médio como etapa final de educação básica.
Os proponentes da reforma, especialistas analfabetos sociais e doutores em prepotência, autoritarismo e segregação social, são por sua estreiteza de pensamento e por condição de classe, incapazes de entender o que significa educação básica. E o que é pior, se entende não a querem para todos.
Com efeito, por rezarem e serem co-autores da cartilha dos intelectuais do Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio, etc., seus compromissos não são com direito universal à educação básica, pois a consideram um serviço que tem que se ajustar às demandas do mercado. Este, uma espécie de um deus que define quem merece ser por ele considerado num tempo histórico de desemprego estrutural.  O ajuste ou a austeridade que se aplica à classe trabalhadora brasileira, da cidade e do campo, pelas reformas da previdência, reforma trabalhista e congelamento por vinte anos na ampliação do investimento na educação e saúde públicas, tem que chegar à escola pública, espaço onde seus filhos estudam.
A reforma do ensino médio que se quer impor por Medida Provisória segue figurino da década de 1990 quando MEC era dirigido por Paulo Renato de Souza no Governo Fernando Henrique Cardoso. Não por acaso Maria Helena Guimarães é a que de fato toca o barco do MEC. Também não por acaso que o espaço da mídia empresarial golpista é dado a figuras desta década.
Uma reforma que retrocede ao obscurantismo de autores como Desttut de Tracy que defendia, ao final do século XIX, ser da própria natureza e, portanto, independente da vontade dos homens, a existência de uma escola rica em conhecimento, cultura, etc., para os que tinham tempo de estudar e se destinavam a dirigir no futuro e outra escola rápida, pragmática, para os que não tinham muito tempo para ficar na escola e se destinavam (por natureza) ao duro ofício do trabalho.
Neste sentido é uma reforma que anula Lei Nº. 1.821 de 12 de março de 1953. Que dispõe sobre o regime de equivalência dos cursos de grau médio para efeito de matrícula nos curso superiores e cria novamente, com outra nomenclatura, o direcionamento compulsório à universidade. Um direcionamento que camufla o fato de que para a maioria da classe trabalhadora seu destino são as carreiras de menor prestigio social e de valor econômico.
Também retrocede e torna, e de forma pior, a reforma do ensino médio da ditadura civil militar que postulava a profissionalização compulsória do ensino profissional neste nível de ensino. Piora porque aquela reforma visava a todos e esta só visa os filhos da classe trabalhadora que estudam na escola pública.  Uma reforma que legaliza o apartheid social na educação no Brasil.
O argumento de que há excesso de disciplinas esconde o que querem tirar do currículo – filosofia, sociologia e diminuir a carga de história, geografia, etc. E o medíocre e fetichista argumento que hoje o aluno é digital e não agüenta uma escola conteudista mascara o que realmente o aluno desta, uma escola degradada em seus espaços, sem laboratórios, sem auditórios de arte e cultura, sem espaços de esporte e lazer e com professores esfacelados em seus tempos trabalhando em duas ou três escolas em três turnos para comporem um salário que não lhes permite ter satisfeitas as suas necessidades básicas.  Um professorado que de forma crescente adoece. Os alunos do Movimento Ocupa Escolas não pediram mais aparelhos digitais, estes eles têm nos seus cotidianos. Pediram justamente condições dignas para estudar e sentir-se bem no espaço escolar.
Por fim, uma traição aos alunos filhos dos trabalhadores, ao achar que deixando que eles escolham parte do currículo vai ajuda-los na vida. Um abominável descompromisso  geracional e um cinismo covarde, pois seus filhos e netos estudam  nas escolas onde, na acepção de  Desttut de  Tracy  estudam os que estão destinados a dirigir  a sociedade.  Um reforma que legaliza a existência de uma escola diferença para cada classe social. Justo estes  intelectuais que em seus escritos negam a existência das classes sociais.
Quando se junta prepotência do autoritarismo, arrogância, obscurantismo e desprezo aos direitos da educação básica plena e igual para todos os jovens, o seu futuro terá  como horizonte a insegurança e a vida em suspenso.

Gaudêncio Frigotto * Filósofo e Educador. Professor do Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Fonte: https://pcb.org.br/portal2/12283