Como surgiram projetos que ameaçam professores até com prisão. Por
que sua proposta, contrária a ideologias é primária, silenciadora de
opiniões divergentes e, no fundo… profundamente ideológica.
O artigo é de Cleomar Manhas, assessora do Inesc e doutora em educação pela PUC/SP, publicado por Outras Palavras, 05-07-2016.
Eis o artigo.
O que seria a tão falada, e pouco explicada “escola sem partido”?
Basicamente, trata-se de uma falsa dicotomia, pois não diz respeito à
não partidarização das escolas, mas sim à retirada do pensamento
crítico, da problematização e da possibilidade de se democratizar a
escola, esse espaço de partilhas e aprendizados ainda tão fechado, que
precisa de abertura e diálogo.
A pauta que precisamos debater é a da qualidade da educação, e não falácias ideológicas sobre a “não ideologização da escola”, algo que se vê até mesmo em alguns diálogos sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
O Plano Nacional de Educação foi aprovado há dois anos. Durante sua
tramitação, uma das polêmicas suscitadas foi acerca da promoção das
equidades de gênero, raça/etnia, regional, orientação sexual, que acabou
excluída do texto do projeto. Por consequência, isso influenciou a
tramitação dos planos estaduais e municipais, que também sucumbiram ao
lobby conservador e refutaram qualquer menção a gênero, por exemplo,
difundindo a falsa tese da aberração intitulada “ideologia de gênero”. Isso causou uma confusão deliberada entre uma categoria teórica e uma pretensa ideologia.
Marivete Gesser, do Laboratório de Psicologia Escolar e
Educacional da Universidade Federal de Santa Catarina, explica que
“gênero pode ser caracterizado como uma construção discursiva sobre
nascer com um corpo com genitália masculina ou feminina” e, por meio de
normas sobre masculinidade e feminilidade, vamos nos construindo como
sujeitos “generificados”. O preconceito vem dos discursos que
naturalizam os lugares sociais de homens e mulheres como únicas
representações, e segregam qualquer outra forma de manifestação. Além
disso, em pesquisa realizada por estudantes do ensino médio em Brasília,
feita no âmbito do projeto Educação de Qualidade(Inesc/Unicef), constatamos que uma das razões do abandono escolar é a discriminação relativa ao público LGBTI. Razões mais do que suficientes para discutirmos gênero nas escolas.
Qual a ligação entre esses dois temas, “escola sem partido” e “ideologia de gênero”,
em momentos tão distintos? O que parece ter diferentes motivações e
origens resulta dos mesmos elementos: os fundamentalismos conservadores
que tentam passar às pessoas suas ideologias e crenças. Afinal de
contas, não são apenas os pensamentos marxistas que são ideológicos,
como tentam fazer crer os defensores da “escola sem partido”. Sendo assim, o que significa ideologia então?
Um dos conceitos mais difundidos é o de Karl Marx em parceria com Friedrich Engels, na obra a Ideologia Alemã,
em que afirmam ser a ideologia uma consciência falsa da realidade,
importante para que determinada classe social exerça poder sobre a
outra, bem como a necessidade de a classe dominante fazer com que a
realidade seja vista a partir de seu enfoque.
O conceito, no entanto, sofreu inúmeras interpretações, como a de Lênin para
a ideologia socialista, como forma de definir o próprio marxismo.
Portanto, há ideologia nas diferentes formas de ver e conceber o mundo.
Não existe neutralidade. Quando defendem a “não ideologização”, em nome
dessa pretensa neutralidade, também estão impregnados de ideologia.
Os teóricos do projeto “escola sem partido” advogam a
neutralidade e se dizem não partidários. No entanto, suas intenções são
claras: a retroação dos avanços que tivemos nos últimos tempos,
especialmente com relação aosdireitos humanos. Por exemplo, quando dizem lutar contra a doutrinação, uma das situações apresentadas no site do movimento da “escola sem partido” é um seminário realizado pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados sobre direitos LGBTI e a política de educação. Eles citam esse caso como uma afronta ao artigo 12 daConvenção Americana sobre Direitos Humanos,
afirmando que pais e seus filhos têm que ter uma educação moral de
acordo com suas convicções. É uma deturpação do citado artigo, que diz
respeito à liberdade religiosa que deve ser respeitada individualmente.
Além disso, manipulam e fazem confusão deliberada com a discussão
realizada no seminário, que reafirmou a importância de se debater
questões de gênero e de sexualidade nas escolas, para que as diferenças
não sejam transformadas em desigualdades.
Em outro momento, dizem que os alunos (a quem chamam de “vítimas”) acabam sofrendo de Síndrome de Estocolmo, ligando-se emocionalmente a seus algozes (“professores doutrinadores”).
Nesse caso, os estudantes se recusariam a admitir que estão sendo
manipulados por seus professores e sairiam furiosos em suas defesas.
Para exemplificar, citam momentos identificados como “monstro
totalitário arreganha os dentes” e chamam os estudantes de soldadinhos
da guarda vermelha.
Em um dos livros desse movimento, é passada a noção de que o
professor não é um educador, separando assim o ato de ensinar (passar
conteúdos) e educar. O/A professor(a) deveria estar ali apenas para
passar conteúdo sem crítica, problematização ou contextualização, em um
ato mecânico. Paulo Freire é demonizado como o grande doutrinador – justo ele, que construiu uma obra toda para combater doutrinações.
Esse movimento da “escola sem partido” nasceu em 2004 e não
gerou muitas preocupações, porque parecia muito absurdo e coisa pequena.
No entanto, tem tomado corpo e crescido, na mesma toada de movimentos fascistas tais como ‘revoltados online’, responsável por apresentar recentemente a proposta da “escola sem partido”
ao ministro da Educação do governo ilegítimo. Aliás, é bom dizer que
foi a primeira audiência concedida pela pasta da Educação nesta gestão
ilegítima. E em vídeo, os criadores da “escola sem partido” e do “revoltados online’
explicam que criaram tais coisas a partir de motivações pessoais. Ou
seja, eles tentam impingir ao país projeto com base em impressões e
vivências individuais.
A proposta foi apresentada em forma de projeto pela primeira vez no Estado do Rio de Janeiro, pelo deputado Flávio Bolsonaro. A segunda vez foi no Município do Rio de Janeiro, pelo vereador Carlos Bolsonaro – ambos filhos do deputado federal Jair Bolsonaro. E tal proposta já se espalhou por diversas câmaras municipais e assembleias legislativas. Em âmbito nacional, o deputado Izalci (PSDB/DF) apresentou o PL 867/2015 à Câmara Federal, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
Dentre várias questões, o artigo 3º do referido projeto diz o seguinte:
“Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação
política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização
de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas
ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes.” O que viola tais
convicções provavelmente será julgado de acordo com o que e com quem
quiserem criminalizar. O projeto ainda levanta uma polêmica do século
XIX quando se discutia a dicotomia família e escola, o que deveria estar
superado no século XXI.
Há vários projetos tramitando apensados a esse, ainda mais perversos. Um deles, do deputado Victório Galli, doPSC/MT, proíbe a distribuição de livros didáticos que falem de diversidade sexual. E há ainda o projeto de lei 1411/2015, do deputado Rogério Marinho PSDB/RN, cujo relator é o mesmo deputado Izalci.
Esse projeto tipifica o crime de assédio ideológico, que, de acordo com
o projeto, significa: “toda prática que condicione o aluno a adotar
determinado posicionamento político, partidário, ideológico ou qualquer
tipo de constrangimento causado por outrem ao aluno por adotar
posicionamento diverso do seu, independente de quem seja o agente.” E
diz ainda que o professor, orientador, coordenador que o praticar dentro
do estabelecimento de ensino terá a pena acrescida de um terço. Ou
seja, a s opiniões fora da escola, tais como nas redes sociais, poderão
penalizar o profissional da educação também.
O movimento criou recentemente uma “associação escola sem partido”
para ter uma entidade com a qual pudesse recorrer à Justiça em casos
que julgasse relevantes. E a primeira ação por eles promovida foi contra
o INEP, devido ao tema da redação do Enem de 2015, que tratava de violência contra as mulheres,
tema que julgaram doutrinador e partidário. A violência contra as
mulheres é reconhecida como grave problema em diversos tratados
internacionais dedireitos humanos, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), aprovada pela ONU em 1979, e outros que a seguiram. No Brasil, a cada 4 minutos uma mulher dá entrada no SUS por
ter sofrido violência física, e 13 mulheres são assassinadas a cada dia
– uma a cada 1 hora e 50 minutos. A violência está inclusive nas
próprias escolas, como demonstrou a iniciativa “Meu professor abusador”.
Há vários ovos de serpente chocando no momento, em diversos
locais, seja no âmbito dos legislativos municipais, estaduais ou
nacional, e mesmo nos Executivos, e não temos garantias de que o
Judiciário irá barrar tais aberrações. Portanto, nossa única arma é a
manifestação, a nossa presença nas ruas e a disseminação de informações a
um público maior possível, já que é na internet e em redes como whatsapp que
esses grupos têm angariado seguidores, muitos deles muito jovens. É
preciso promover debates que esclareçam essas situações que estão
amadurecendo na surdina, com pessoas que não nos representam, mas estão
em cadeiras que permitem tais movimentos.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/557389-escola-sem-partido-escola-silenciada